domingo, 30 de setembro de 2012

De José Afonso, uma canção bem actual:



Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Quase

Quase o mar, quase um navio.
Quase névoa, quase lágrima.
Quase perdido, o teu olhar, na lonjura.


Pequena canção para uma sombra
Era uma sombra, um sorriso.
Era redonda a lágrima.
Que esculpia melancolia no meu rosto.

António Eduardo Lico

Uma poesia de António Maria Lisboa:

Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.

sábado, 29 de setembro de 2012

Do blog Guitarra de Coimbra IV uma notícia sobre o espectáculo de homenagem a José Afonso:

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7HlWA27ZP4O38EVSheSdMSGmJOUi0o3ozsu4IIVh6pNnQzse9Rha2WG_IQul5jGy90wYxiXZhMOnHF6rv2G6V7joPT5H3D1hoBnWyuG9QqYUQZNeWJfGl5VwbBdY6DumMrSDiGWbvtjh0/s1600/JAfonsoCAOrfeonistasDB29-9-.jpg
Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Pequena melodia

Da palavra o som.
Do som a melodia.
Da melodia o poema.


Vuela la mariposa
La mariposa vuela.
Y rodopiando vuela la mariposa.
El Infinito es pequeño para tan breve vuelo.

António Eduardo Lico




Do heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Ode Triunfal:


Ode Triunfal


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!

Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Rimbaud e Baudelaire eram franceses...

 Rimbaud e Baudelaire eram franceses,
poetas franceses, concluo.
Não estudo Lógica, mas deveria fazê-lo.
se o fizesse,  saberia, ver  para além
do que se pode ver numa manhã obscura,
saberia até da estética usada
pelos poetas franceses. Sem dúvida,
saberia muito de estética, e das estéticas.
Saberia que Baudelaire não foi poeta maldito;
todos os poetas são benditos.
Uma poesia de Eugénio de Andrade:

Urgentemente

É urgente o amor
É urgente um barco no mar

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Dai-me tanta água, quanta precise...

Dai-me tanta água, quanta precise,
para que nunca o orvalho se esgote
e a mais humilde flor
possa sempre fazer florir
o seu próprio amanhecer
Uma poesia do Camilo Peçanha:

Violoncelo

Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...
Trêmulos astros,
Soidões lacustres...
_ Lemes e mastros...
E os alabastros

Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
_ Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Vintage Porto

Ah o vinho que corre no Douro
filosófico na sua melancolia rubra
não tem margens definidas
e corre para mares ignorados.
Rubro, como convém,
desafia químicas antigas
e gota a gota, indiferente,
tinge o rio de invisível vermelho.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Ezra Pound:


A Song Of The Degrees

I
Rest me with Chinese colours,
For I think the glass is evil.

II
The wind moves above the wheat-
With a silver crashing,
A thin war of metal.

I have known the golden disc,
I have seen it melting above me.
I have known the stone-bright place,
The hall of clear colours.

III
O glass subtly evil, O confusion of colours !
O light bound and bent in, soul of the captive,
Why am I warned? Why am I sent away?
Why is your glitter full of curious mistrust?
O glass subtle and cunning, O powdery gold!
O filaments of amber, two-faced iridescence!

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio rio que corre sem águas:


Na margem de um rio, as horas são ainda mais absurdas

As horas são absurdas,
passam, e já não são,
sem deixar de o ser.
Um desconhecido esteta
clama na confluência
do Ser e Não Ser
que o Belo é absurdo
porque é belo em si mesmo,
indiferente ao tempo
e às horas que passam
e já não o são,
sem deixar de o ser.
Uma poesia de Cesário Verde:



Deslumbramentos

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Nas margens, a Esfinge...

A Esfinge habita as margens
apenas como esfinge, de pedra,
absurdamente de pedra
impenetrável ao silêncio
que lhe vem de fora;
e vive, no entanto
em total mudez, na pedra
que lhe é externa,
só, contemplativa,
fazendo do tempo pedra,
só nas margens, sem esperar nada.
Uma poesia de Fernando Grade:

ROCHAS DA BAFUREIRA

«Que é o amor senão uma fera espiritual
feita de todos os animais carnívoros?»
(Teixeira de Pascoaes)



São três aves sobre o mar calminho, rés
ao vento que corre pouco, sol de cardos.
Já não trazem mortos nem sal no convés
os barcos que vejo, mas trazem leopardos.


Viúvas do mar, quem vos amaldiçoa
no país de limo, com sonhos à ré?
Sabres, lenços, lágrimas de bacalhoa:
não há bicho algum que morra jacaré!


Oh brumas de cal que pesco, cheiro e caço,
os meus beijos têm saliva de lacrau,
e as ondas que afago fazem lembrar o aço...


No areal em chamas, com pedras e paus,
há guinchos de vermes, larvas de sargaço
-- e o cio da gaivota tem sede de caos.

domingo, 23 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Os rios sem águas são misteriosos

 O láudano que corre como um rio
nos Hinos à Noite, subtil
e fino no traço que desenha.
Deuses loucos dançam na roleta
um pas de deux com Dostoiewski
e orvalhos cintilantes de luz
dançavam no eterno copo de vinho
que Hafez erguia na mão
como se fora uma rosa.
Regresso para dentro de mim mesmo
como rio que corre sem águas.
Uma poesia do poeta Ibn Habib, que viveu na Silves Moçárabe, séc. XI:

Apelo

Ó Dona dos Corações,
em ti talvez

Esteja a causa do tormento do cantor.
Ainda uma vez
Diz adeus a quem te quer,
E que, sem ti,
por nada sente amor.
É que, se por acaso,
longe surges na lembrança
Por ti choro pranto de criança.

sábado, 22 de setembro de 2012


Mais uma canção de Luiz Goes em jeito de despedida




Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Não consta que Zeus fosse versado em gramática...

Não consta que Zeus fosse versado em gramática
e em Roma quis ser conhecido como Júpiter,
quase como se fosse a quarta geração olímpica.
A gramática não é atributo divino.
Como ficas bem pairando sobre o Coliseu
hesitante entre Homero e Virgílio
e Afrodite banhando-se feliz no Tibre
ignorando que já era Vénus.
O enigmático Eneias, esse de Tróia
que a Musa quis de Roma fundador
e viajante teleológico, guiado por experimentado aedo
que já te conhecia o destino.
Uma poesia do poeta chinês Wang Wei.
Wang Wei, um dos grandes poetas da Dinastia Tang, viveu entre 701 e 761. Juntamente com Du Fu e Li Bai representa a idade de ouro da poesia chinesa.
Fica este poema:


Vem beber um copo e descansar,
Os homens mudam sempre, como as ondas do mar.
Nós dois temos envelhecido juntos,
Apesar dos reveses, continuamos vivos.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário (ainda incompleto) O esboço do vento:


Epifania do vinho

Sorrio e bebo o meu vinho
Como música de Dionísio
O mosto agita a memória

E a divindade volta em glória
Rubra e doce sobre o meu corpo
Abrupta a cada gota de vinho

Sobre as flores que adivinho
Brotando do vinho generosas
E quentes de fugazes perfumes

António Eduardo Lico



Uma poesia de Jorge de Sena:

Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
como sereis cruéis, como sereis injustas?
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário O esboço do vento:


De madrugada os rios...

No pino da madrugada uma
só fonte te cobria de rosas
e rios nasciam-te nos olhos

Ao ritmo de antigos orvalhos
chorados por deuses destronados
a cada florida Primavera

Como se em Abril não chovera
e toda a sede desse em água
mansa e azul de melancolia

António Eduardo Lico
Uma posia de Paul Verlaine:

Il pleure dans mon cœur

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville ;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur ?

Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits !
Pour un coeur qui s'ennuie,
Ô le chant de la pluie !

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi ! nulle trahison ?...
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine !

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Reponho mai uma poesia do poemário A rosa é a via:


Soneto da guitarra e da rosa

A guitarra, com ser madeiro oco
Espalha a sua canção dolente;
Das cordas o som é uma torrente
Como se fora duende barroco

A rosa é guitarra que invoco
Cada entardecer ao sol poente;
Harmónico o perfume nascente,
Ao sul destes dedos com que te toco

Na rosa há melodias serenas
Pela guitarra galopam volúpias
E de súbito nascem cantilenas

E na guitarra nascem utopias
Quando nas rosas vemos açucenas
E levantamos do som as mãos ímpias

António Eduardo Lico
Uma poesia de Maria Teresa Horta:

Segredo

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Sete pétalas de rosa de Baco a Dionísio

De Baco a rosa jorra como vinho;
é de mosto esta rosa, ou esta máscara
que te revela: um dia Dionísio,
no outro Baco curado por Cibele.
Foste o único filho de uma mortal
nascido com destino de ser deus.
Quando eras Dionísio, Ninfas e Horas
cuidaram-te a tua divindade.
Baco, ou Dionísio, que importa?
São sete pétalas escondidas
que velam o teu nome.

António Eduardo Lico
De Luiz Goes, Balada do mar, acompanhado por Carlos Paredes:


Morreu Luiz Goes, referência incontornável da Canção de Coimbra.
Deixo aqui um vídeo de memória, e como diz na canção que canta - Olá Poesia....Adeus Poesia.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Reponho duas poesias do poemário A rosa é a via:


Como rosa

Como rosa que compõe
jardins nos teus cabelos
e colhe água nos teus olhos,
o teu perfume secreto e denso
perde-se ao longe.


Pour une rose fort et intense

Toi qui est fort et intense
reine sur mon corps
et ma volonté.
Soit l’aigle qui vole,
et retourne sur moi
portant des roses.

António Eduardo Lico


Um soneto de Antero de Quental:


Na Mão de Deus


Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

domingo, 16 de setembro de 2012

Reponho duas poesias do poemário A rosa é a via:


As rosas que não existem...

As rosas que não existem
são as melhores!
Terão todos os odores
e todas as cores.
O seu perfume inexistente
perder-se-à ao longe, puro
e jamais será desvendado.


A sudden flower

A sudden and unexpected flower
emerges on the corner of your smile
as the rose arises alone on the grass.

António Eduardo Lico




Uma poesia de Sá de Miranda:


Comigo me desavim


Comigo me desavim,
Vejo-me em grande perigo,
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Antes que este mal tivesse,
Da outra gente fugia.
Agora já fugiria de mim,
Se de mim pudesse.
Que cabo espero ou que fim
Deste cuidado que sigo,
Pois trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


O eterno segredo das rosas

Porque uma rosa é sempre uma rosa
mesmo se não existe?
Uma rosa existe sem rios,
sem água, apenas com
a ideia de ser um dia uma rosa
que um dia poderá despontar,
efémera como convém a uma rosa,
e eterna no mistério
de perfume e de silêncio.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Amália Rodrigues:


Lágrima

Cheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
O jeito de te querer tanto

Tenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo
Se considero que um dia hei-de morrer
No desespero que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile no chão
E deixo-me adormecer
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias de chorar
Por uma lágrima tua
Que alegria me deixaria matar

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Reponho duas poesias do poemário A rosa é a via:


A Sul da rosa

Não procuro as rosas, o perfume,
a rosa em si.
Apenas o Sul da rosa.


Rente à rosa

Rente à rosa e ao odor, a sombra
alguém a verá?

António Eduardo Lico

Uma poesia de Carlos Oliveira:

Terra Pátria serás nossa,
Mais este sol que te cobre,
Serás nossa,
Mãe pobre de gente pobre.

O vento da nossa fúria
Queime as searas roubadas;
E na noite dos ladrões
Haja frio, morte e espadas.

Terra Pátria serás nossa
Mais os vinhedos e os milhos,
Serás nossa,
Mãe que não esquece os filhos.

Com morte, espadas e frio,
Se a vida te não remir,
Faremos da nossa carne
As seraras do porvir.

Terra Pátria serás nossa,
Livre e descoberta enfim,
Serás nossa,
Ou este sangue o teu fim.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


O Tempo e a rosa

O Tempo tem um silêncio infinito
e perfumes de flores negras.
Desfila perante nós,
velado, e enfeita-se de anos,
meses, dias, horas, minutos, segundos.
Quem ousa colher as negras rosas do Tempo?

António Eduardo Lico
O poeta de hoje é o Conde de Lautréamont.
Nascido Isidore Lucien Ducasse em Montevideu, Uruguai, em 1846, filho de um funcionário da Embaixada de França no Uruguai. A mãe morre quando ele tinha 2 anos. Em 1856 foi para França estudar em Tarbes e mais tarde em Pau.
Pouco mais se conhece acerca da sua vida. Morre em Paris em 1870 com apenas 24 anos de idade.
Lautréamont, nome literário que adoptou, tinha todas as condições para vir a tornar-se um mito na história da literatura mundial. A sua obra fundamental, Os cantos de Maldoror é considerada uma obra fundamental na literatura fantástica, mas para além disto, difícil de classificar. Mais tarde os surrealistas reivindicaram.no como um precursor
Deixo esta tradução de uma poesia sua:


O génio é o garante das faculdades do coração.
O homem não é menos imortal do que a alma.
Os grandes pensamentos vêm da razão!
A fraternidade não é um mito.
As crianças que nascem não conhecem nada da vida, nem se sequer a sua grandeza.
Na tristeza, os amigos aumentam.
Tu que entras, deixas todo o desespero.
Bondade, o teu nome é homem.
Este aqui que rebaixa a sabedoria das nações.
Cada vez que leio Shakespeare, parece-me que disseca o cérebro de um jaguar.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Reponho duas poesias do poemário A  rosa é a via:


Poesia simples

Eram uns olhos pretos, de que me despedi
quase sem os ver, quase sem me verem,
quase, como rosa que abre e morre,
quase como a distância entre a rosa
e o seu reservado perfume.


Canta camarada, canta
canta que ninguém te afronta
que esta minha espada corta
dos copos até à ponta

(Canção de contrabandistas da Beira-Baixa)

Era a lua, era a madrugada, era a raia
essa nesga de terra que te querem negar.
Era o canto que levavas na boca,
era uma terra noutra terra
que trocavas nessa obscura linha
a que chamam raia.
Era o silêncio dos passos e das sombras
e uma espada desenhada
como rosa por sobre o teu canto.

António Eduardo Lico


O poeta de hoje é Sidónio Muralha.
Nascido em 1920 no Bairro da Madragoa em Lisboa e falecido em Curitiba, Brasil em 1982.
A sua vida foi ao mesmo tempo aventurosa e organizada. Auto exilou-se no então Congo Belga onde começou o seu trabalho para a Unilever e onde chegou a Director Geral. Viveu na Bélgica e percorreu vários países, em vários Continentes em trabalho. Mais tarde fixa-se no Brasil, corria o ano de 1961.
No Brasil fundou a Editora Giroflé, que muitos dizem, revolucionou o universodas publicações para crianças.
Como poeta, Sidónio Muralha é considerado neo.realista.
Fica esta poesia:



Três Poemas

Companheira dos homens

I
A poesia dos senhores que propagam o nevoeiro e confundem as gentes
poesia tão pessoal como uma escova dos dentes,
a poesia que eles queriam guardar nas suas casas
numa gaiola, como um pássaro a quem mutilassem as asas,
a poesia quebrou as algemas e saiu da prisão
e arrastou-se nas trincheiras, e dormiu nos campos de concentração,
e amou aqueles que negam mas que nunca se negaram,
e conheceu prostitutas que nunca se entregaram,
e comeu na malga dos soldados aquela sopa de massa
que é igual para todos como o pré e a desgraça.
E os homens aprenderam nas noites de inclemência
a cantar os seus versos, a recitá-los de cor,
e a murmurá-los nessas horas em que tudo é confidência
e em que cada palavra ganha uma ressonância maior.

II
O medo faz calar as aves nas florestas densas
mas as canções dos homens faze-as mais largas, mais intensas,
mais impetuosas, mais rudes, canções que ferem e espantam
pois com o medo as aves calam-se e os homens gritam e cantam.
E a canção é um homem que percorre o Mundo lés a lés
gesticulando com os seus próprios braços, andando com os seus próprios pés,
grito que vai de continente em continente implacável e forte
e que passa as fronteiras sem precisar de passaporte.
Canções robustas e lavadas que se levantam cedo
e bebem a madrugada e têm o fôlego dos atletas,
porque enquanto as aves se calam, estranguladas pelo medo,
o medo, como uma faca, rasga os corações dos poetas.

III

E os poetas dão-se as mãos como se encontram as poesias
e se encontram as exigências de duas refeições todos os dias.
Que todos temos os mesmos problemas, as mesma fúrias e dores,
e todos pagamos o mesmo juro nas casas de penhores,
e todos falamos a mesma língua terrena, viva, saborosa e agreste
e deixamos aos anjos a linguagem celeste,
e todos transportamos tijolos para a casa começada
e lhe rasgamos as janelas e a desejamos arejada,
e todos temos um estômago e temos um coração
que bate compassadamente a mesma inquietação.
Inquietação presente nas coisas, nos gestos e no ar,
inquietação que remexe ou que paira, ameaçadora e tamanha,
como um polvo que se revolve no fundo do mar
ou um grão de dinamite incrustado na montanha.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Cobre-me o corpo com rosas
Quando eu estiver no caixão,
Das mais lindas e viçosas,
Põe-mas sobre o coração.

(Poeta popular
Manuel da Silva Varejota, sitio dos Funchais,
freguesia de Querença, conselho de Loulé.)

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
e ser-lhe o coração e o viço
e o alimento obscuro.

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
todas as rosas, como se jardim fosse
e tivesse todas as rosas em mim.

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
e as rosas fossem em mim
vida e morte, lenha e fogo.

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
e ser como as rosas – o silêncio
ou o segredo de se morrer quando se abre.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Manuel da Fonseca:


Os Olhos do Poeta

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

domingo, 9 de setembro de 2012

Reponho duas poesias do poemário O canto em mim:


A palavra das rosas

Dai-me uma, duas palavras
com que escreva uma rosa no teu sorriso


Elegia para uma flor morta

A obscura flor morta
pensa ainda no seu perfume
quando os insectos
procuram nas suas pétalas mortas
a fragrância que a animou.

António Eduardo Lico


Algumas poesias de Omar Khayyam:

Um pouco de pão,
um pouco de água fresca,
a sombra de uma árvore
e os teus olhos!
Nenhum sultão
é mais feliz do que eu...
Nenhum mendigo
é mais triste....
.

Deixemo-nos de palavras vãs.
Levanta-te e dá-me um pouco de vinho.
Esta noite a tua boca
é a mais bela rosa do mundo
e basta para todos os meus desejos.
Dá-me vinho.
Que ele seja corado como as tuas faces,
e o meu remorso
será leve como as tuas tranças.
.

A brisa da Primavera renova as rosas
e, na sombra azul do jardim,
acaricia o rosto da minha amada.
A despeito da ventura que já gozei,
sou tão feliz hoje
que não me lembro de ontem:
esqueço o passado...
É tão imperioso o prazer deste momento...

sábado, 8 de setembro de 2012

Do poemário Que de dentro não se vê reponho esta poesia:


O vinho por sobre a rosa

Bebe o teu vinho
e como o persa longínquo
procura as rosas.
As que existem vermelhas nos lábios
e as que perfumam e dão cor ao vinho.
Colhe dos lábios a cor rubra
e do vinho o delicado perfume.
Só assim terás a tua rosa
e a tua eternidade.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Cabral do Nascimento:


Cantiga

Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Reponho duas poesias do poemário O canto em mim:


Esta mensagem que me chega

Eis como tudo começa:
de Hermes recebi a mensagem
que já me estava destinada

Recebo-a com a indiferença
gelada dos que não esperam.
Os deuses já conhecem todas
as mensagens e Hermes
é apenas o velado mensageiro.


O azul do céu azul

O azul do céu é azul
quando o céu é azul.
Quando o céu não é azul
o azul do céu não é azul.
O azul do céu quando
o Céu é azul não é bom
para os filósofos;
é só azul, sem filosofias;
e de metafísica
apenas existe a vaga
noção que tenho do azul
do céu, quando é azul.

António Eduardo Lico

O poeta de hoje é Joaquin Namorado.
Nascido em 1914 e falecido em 1986, Joaquim Namorado de formação matemática, foi proíbido de ensinar no ensino oficial pelo Estado Novo, dedicou-se ao ensino particular. Depois do 25 de Abril de 1974 ingressou nos quadros de professores de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnlogia da Universidade de Coimbra.
Como poeta, Joaquin Namorado vai da estética neo-realista até afloramentos surrealistas. Conta-se até que foi Joaquim Namorado que cunhou a designação "neo-realista" para ludibriar a polícia política do Estado Novo, evitando usar a designação "realismo socialista".
Fica esta poesia:

Port Wine

O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova -York e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bars.


O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças
primeiro se afundam em terra suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.


Nas sobremesas finas, as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.


As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos dos cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.


Em Londres os lords e em Paris os snobs,
No Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.


O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! - ou morre.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Reposição de duas pequenas poesias do poemário O canto em mim:



A Esfinge de ébano

Da esfinge de ébano,
a dos doces lábios
colhi apenas
amarga flor de silêncio



Nas águas fitava-se Narciso

Solitário em si mesmo, por isso, belo
Narciso fitava-se nas águas.
E de Eco já não ouvia a última palavra,
mortalmente ferido de si próprio
era já a flor na memória
das palavras na pedra.


António Eduardo Lico

Pedro Oom é o poeta de hoje. Nascido em Santarém em 1926, e falecido em 26 de Abril de 1974, num restaurante de Lisboa, quando festejava com amigos os acontecimentos de 25 de Abril de 1974.
Pedro Oom passou do neo.realismo para o surrealismo, foi o autor da teoria do abjeccionismo.


O HOMEM BISADO

Alegra-me ser todas as coisas e as sombras que elas projectam
ser a sombra dos teus seios e da tua boca
o criado de smoking branco que te agita os cabelos
para um cocktail estimulante e fresco
a mesa onde passo a ferro o teu corpo
as espádulas as coxas a curva macia dos joelhos
alegra-me ser o contorno da tua nuca e o binário motor dos teus braços
embora mais pequeno do que um corpúsculo celeste
sou os milhões de astros microrganismos estrelas
a rota de todos os navios perdidos
a angústia síntese de todos os suicidas
a forma de todos os animais conhecidos
o desenho rigoroso de toda a flora existente

Ontem em Paris hoje em Lisboa amanhã em Júpiter
caminho para a resolução de todos os problemas
sem a certeza de resolver qualquer deles
como se fosse uma máquina de somar parcelas
quatro vezes quatro oito vezes dez oitenta
sabe-me a vida ao que É
esta progressão assustadora de crocodilos bebendo limonada
Ontem fui a prostituta a quem paguei a noite
hoje serei talvez o inocente violentador frustrado
Sutmil é a cidade par aonde me evado todas as noites à aventura
e «os anéis de Saturno são a força centrífuga-centrípeta que me
agita os braços no espasmo amoroso»
a cabeça em Marte os pés na Terra
vindo «lá do fundo do horizonte lívido»

O comboio está na gare o comboio vai partir
apressemos o passo o momento é solene
somos o automóvel que sobe a avenida
a pulsação acelerada dos maquinismos
taxímetro de uma cidade de província
satélites de um satélite lunar
Tu és o aeroporto eu o avião que parte
e muito mais calmos entre éter e fogo
percorremos os sonhos de planeta em planeta desfolhando o futuro a flor sempre rara
e marcamos nos astros o nosso roteiro DEZ QUILÓMETROS

amanhã tirarei o curso de sonhador especializado

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Duas pequenas poesias do poemário O canto em mim:


A palavra das rosas

Dai-me uma, duas palavras
com que escreva uma rosa no teu sorriso


Fragmento para uma poesia

Afrodite nascia da água
e uma rosa era o silêncio
futuro que Eros havia de fazer

António Eduardo Lico

Um soneto de Camóes, neste aproximar do fim do Verão.
Relendo os sonetos de Camões, é sempre forçoso observar que foi um dos maiores cultores deste género poético:


Em prisões baixas fui um tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que coisa era viver ledo.
Mas minha Estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizeram de gostos haver medo.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Leva-me o vento...

Leva-me o vento, brandamente,
como se empurrasse as velas
de um veleiro.
Deixo-me levar, porque quero,
a geografia não me interessa,
nem os mapas do meu ser
se podem cartografar.
Leva-me o vento, brandamente,
e nada faço, a não ser deixar-me levar.
Nada sei da rosa dos ventos,
sei apenas das rosas, essas,
a que o vento acaricia brandamente.

António Eduardo Lico
Uma poesia do poeta Egito Gonçalves:


Com Palavras

Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.
Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.
As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?
Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.
Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar...

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Uma reposição de uma poesia do poemário O canto em mim:


De Eros era a rosa

De Eros era a rosa
que em Prometeu
foi Fogo e limo.
depois centelha de vida.
Seria já rosa
o que Pandora
escondia na caixa divina?
Da rosa apenas ficou
a esperança encerrada;
a caixa fechou-se.
Prometeu, eternamente
devorado, e sempre renascido
como o lume que se reacende
e torna fresca a eterna rosa.

António Eduardo Lico
De Manuel Alegre, Senhora das Tempestades:

Senhora das Tempestades

Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terremoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em páginas nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhora das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgica
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa dos ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu catéter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhora das tempestades.